Excertos de Roberto Pla, Evangelho de Tomé - Logion 98
Resulta muito instrutivo observar o radical que é Jesus ao ajuizar tudo o que não é Schaya Vigília do Coração, pois para ele a vida “mortal”, na qual reside nossa consciência cotidiana e que chamamos “vida”, não é vida, senão morte.
Isto não significa que Jesus subvalorize essa vida mortal nossa, pois explica que é nela, enquanto morte, onde se decide a participação na vida; mas ao designar a Schaya Vigília do Coração, em geral, como “vida”, sem nenhum atributo ou adjetivo que a precise, denota que para ele a vida é somente o que nós com nosso olhar de tateio, denominamos Schaya Vigília do Coração para distingui-la da vida que como mortais conhecemos.
Para Jesus, a Schaya Vigília do Coração é a vida única, verdadeira e originária no seio do Pai. Tudo o mais não é vida, senão em todo caso é morte transitoriamente vivificada.
Por outra parte, não é que a vida seja um valor unicamente escatológico, um viver futuro, senão que tudo o que permanece alijado do Pai é morte, e somente o reencontro com o Pai é vida, com independência de que essa consumação se realize no mundo, ou em outro reino.
Em verdade, a vida é dada por Cristo aos que creem nele e se unem a ele, pois só por este ato, os que estavam mortos, os que “eram” mortos, entram na vida. Por isto se diz que o que crê “passou da morte à vida”.
Ainda que é certo que a busca da vida implica sempre um futuro que há que alcançar, não há que ver nisto uma dualidade de ordem cósmica. A vida é sempre um futuro para o que não a alcançou, mas é um presente uma vez que se tenha nela entrado, com independência do lugar celeste ou terreno onde esse trânsito se efetue.
A Schaya Vigília do Coração pode ser imaginada por muitos como uma prolongação da vida mortal, como se houvesse dois modos diferentes de vida permutáveis entre si; mas o ensinamento de Jesus não permite pensar em dualidade, pois ele disse: “O que crê no Filho tem a vida eterna (mas) o que resiste ao Filho não verá a vida (Jo 3,36). Se do que resiste ao Filho se diz que não verá a vida, é porque agora, antes de crer, não tem vida, senão a morte.
Quando no sexto dos “ais” recompilados por Mateus, acusa Jesus aos escribas e fariseus hipócritas de ser “semelhantes a sepulcros caiados” (v. Fariseus), parece pensar em todos os “mortos” que com aparência de alma ou de corpo se afanam em manter sepultadas às “ovelhas” as quais ele se propõe dar o alimento da vida. Por isso, no Discurso sobre a obra do Filho que reproduz o quarto evangelho, disse: “Todos os que estejam nos sepulcros ouvirão sua voz”.
Aqueles que se constituem em sepulcros são o corpo e os conteúdos da alma, e os que estão nos sepulcros, mortos, são as “ovelhas” que ainda desde o sepulcro, “ouvirão a voz do Filho de Deus”, e viverão, isto é, ressuscitarão à vida.
Esta é justamente a locução que repete Jesus: “Minhas ovelhas escutam minha voz” (Pastor e Ovelhas). Algumas perícopes como a parábola do filho perdido, tem esse sentido profundo, pois o filho “estava morto e voltou à vida; estava perdido e foi achado”. Paulo Apostolo o repete: “Ofereço-os a Deus como mortos retornados à vida” (Rm 6,13).
Isto é o que também se diz na passagem que reproduz João: “O que escuta minha Palavra (o que ouve minha voz) e crê no que me enviou, tem vida eterna, e não incorre em juízo senão que passou da morte à vida”.
- Este texto de João explica duas coisas a respeito do juízo: que ouvir a Palavra e crer nela já é em si mesmo o juízo, pois é a recepção da vida, e também que o juízo não é um acontecimento distinto da consumação, ainda que sim possa ser uma consequência, com independência do lugar em que ocorra e das condições, pois pode produzir-se antes ou depois da morte comum.
Quando o estudioso da religião do Deus vivo, do Deus vivente em todos os homens, consiga desprender-se da estranha e supersticiosa ideia de que os conteúdos transitórios da alma e que incluso o corpo mortal — o qual, por certo, nunca é igual a si mesmo — haverão de ressuscitar depois da morte comum, será a ele possível entender o que queria dizer Jesus quando falava da “ressurreição dentre os mortos”.
Naquela ocasião em que a Jesus o interrogaram acerca da ressurreição, explicou que o Deus vivo dos pais, o de Abraão, o de Isaque e de Jacó, “não é um Deus de mortos senão de vivos”. Assim dava Jesus testemunho de que aqueles Patriarcas “haviam passado da morte à vida” antes de sua morte comum, e que desde então estão vivos “em seu Deus”, pois quem entra na vida entra nela para sempre.
A morte do corpo e a dissolução das vivências conscientes de signo mundano que proporciona a alma, são mortes nas quais o mundo fixa sua preocupação pela vida; mas Jesus, Cristo oculto e manifesto, tem motivos diferentes e de seus ensinamentos se depreende que para ele há duas classes de “mortos”.
Há o que está morto porque nunca teve vida “em si mesmo” (só o Pai “tem vida em si mesmo”, Jo 5,26), nem a terá, mas aparenta ter vida porque está “vivificado”. Este é o caso da alma, que parece “viver” pela vida que a dá o espírito, e também é o caso do corpo, que toma seu remedo de vida, por assistência ao serviço da alma. Nem o corpo, nem os conteúdos psíquicos têm vida em si mesmos, logo são mortais e o serão sempre, porque tal é sua natureza.
- Por esta razão fala o Apóstolo da “alma vivente” (vivificada) e do espírito que dá vida (v. Adão Alma Espírito). Mas dizer “alma” neste caso, é dizer, os conteúdos da alma, de suas vivências.
Os outros “mortos” que Jesus menciona são as “ovelhas”, o espírito, as partículas da luz do Filho as quais o Filho, “como as quer”, as dá vida. As “ovelhas”, como são da mesma natureza da luz do Filho, estão vivas, porque têm a vida em propriedade, e se se diz delas que estão mortas, é porque permanecem sepultadas, ainda que estejam vivas, sob o sepulcro que caiam para elas o corpo e os conteúdos mundanos da alma.
Para estas “ovelhas”, para estas partículas de luz que são o Ser eterno, essencial, do homem, realiza seus trabalhos o Filho, cuja obra consiste em conseguir, para cada um destes mortos viventes, a “ressurreição dentre os mortos”. Esta ressurreição é possível porque tais mortos têm a natureza de vivos, pois seu Deus é um Deus de vivos. Para tal ressurreição não se necessita ocupar nenhuma mansão celestial futura, pois o único preciso é crer no Cristo interior, preexistente, unir-se a ele, porque só “Ele-é”.
Como mostrou Jesus, a vida — ele era a vida — não é incompatível com estar no mundo, senão com ser do mundo, pois ele estava no mundo como Cristo manifesto quando disse: “eu não sou do mundo”.
Em verdade, entrar na vida só é um futuro para quem está alijado de Deus, para quem não está unido, “feito um”, com o Cristo preexistente, interior.
No entanto, tem vida em si mesmo, por doação do Filho, que está unido a Cristo, e esta vida tem o mesmo valor no mundo que depois do mundo.
Isto é o que confirma Jesus quando dizia:
“Há alguns que não saborearão a morte
até que vejam vir com poder o Reino de Deus”.